Desenvolvimento Humano

A formação do psiquismo do ponto de vista Bioniano

 


Mas que coisa é o homem

Que há sob essa geografia?

Um ser metafísico?

Uma fábula sem

Signo que a desmonte? 

Como pode o homem

sentir a si mesmo

Quando o mundo some?

Como vai o homem

Junto de outro homem 

Sem perder o nome?

Como se faz um homem?

Apenas deitar, copular, à espera

De que do abdômen

Brote a flor do homem?

Como se fazer a si mesmo antes

Antes de fazer o homem?

Quanto vale um homem

Menos mais que o peso? Hoje mais que ontem?
                       

Carlos Drummond de Andrade


Agradeço à Comissão Científica o convite para participar desse Simpósio que se ocupa exatamente do tema de como se faz um homem, do que nos humaniza e nos torna algo mais que um número na estatística populacional ou um consumidor para o mercado. 

A proposta é saber como o homem se desenvolve para alcançar a condição de formar outro homem; do que há sob a pele, músculos e ossos que compõe a corporeidade do ser humano, saber como é possível construir uma mente própria e conservá-la integrada, quando os valores do mundo parecem mutáveis e até mesmo irreconhecíveis. Além disso, a proposta é fazermos a indagação sobre como pode o homem manter sua identidade e ao mesmo tempo conviver construtivamente com um outro, diferente de si mesmo?

Todas essas perguntas estão dentro do escopo desse Simpósio que trata do Desenvolvimento Humano e acredito que todos nós estamos aqui movidos pela força dessas questões, cujas respostas parecem ser cada vez mais importantes frente a uma sociedade cujos pressupostos ideológicos cada vez mais se afastam do que até aqui conhecíamos por humanismo.

Se vocês assistiram ao filme Hanna Arendt certamente se lembrarão do seu emocionado discurso dirigido aos alunos de seu curso. Nele a filósofa explicita o conceito da banalidade do mal - relacionando a barbárie à ausência da condição de pensamento - conceito formulado por ela durante o julgamento do carrasco Eichmann, Pensamento é aqui empregado no sentido da reflexão sobre os próprios sentimentos, da conversa interna consigo mesmo, da responsabilidade pelos próprios atos, do compromisso com a ética e com outros seres humanos.  Pensamento como a forma que organiza a cultura e determina as formas específicas de se relacionar com a realidade (Chuster, 1999).

O desenvolvimento do pensamento e do pensar é justamente o marco referencial da obra de Wilfred Bion e o ponto de partida para uma mudança de paradigma no método psicanalítico. 

O conhecimento sobre a constituição do mundo mental se edifica sobre um sólido alicerce constituído pelas teorias elaboradas por Freud a partir da observação dos sintomas neuróticos e do significado dos sonhos de suas pacientes adultas; avança de forma considerável quando Melanie Klein observando o brincar das crianças na sessão de análise, os bebês e sua relação com as mães, descreve a complexidade de um mundo interno; progride com a sutileza das observações de Winnicott iniciadas no ambulatório de pediatria, durante o atendimento aos bebês e suas mães, e se enriquece com as contribuições dos autores que desenvolveram essas teorias em múltiplos sentidos.

Bion, analisando pacientes psicóticos e observando determinados fenômenos grupais elaborou suas teorias iniciais sedimentadas em parte nas contribuições teóricas anteriores, em parte criando formulações originais que constituíram um pilar fundamental na edificação do conhecimento psicanalítico. Além disso, formulou conjecturas que seguem como caminhos abertos para novas contribuições nessa área. 

Depois de ouvirmos as contribuições de Melanie Klein e Winnicott, convido-os a me acompanhar nessa tentativa de aproximação ao pensamento de Bion sobre o nascimento da vida psíquica.

Os conceitos kleinianos de identificação projetiva, splitting, posição esquizo-paranóide e depressiva são centrais na estrutura do pensamento bioniano, mas foram por ele utilizados na construção de uma nova metapsicologia, voltada principalmente para a abordagem do processo do desenvolvimento mental e dos elementos que perturbam esse desenvolvimento.

O significado dessa afirmação é mais bem compreendido na formulação de Thomas Ogden:

“Na “era Freud-Klein” o enfoque da Psicanálise é fundamentalmente compreender o que pensamos ( o conteúdo simbólico dos pensamentos inconscientes, tal qual se reflete, por exemplo, em sonhos, no brincar e nas associações do analisando. Na “era Winnicott-Bion” o foco primário está nas maneiras de pensar ( nossas várias formas de pensar ou nossa incapacidade de pensar que se refletem, por exemplo, no sonhar, no brincar, no imaginar, bem como no estado psicótico de incapacidade de pensar”


Tomo como ponto de partida para essa exposição a Teoria do Pensar, elaborada por Bion no inicio da década de sessenta. Essa Teoria foi concebida como uma tentativa de compreensão de determinados fenômenos clínicos, percebidos no trabalho com pacientes psicóticos, cuja abordagem pelas  teorias psicanalíticas clássicas se mostrava ineficaz. 

De importância fundamental para a Psicanálise Contemporânea, a Teoria do pensar, propõe que o desenvolvimento da mente se daria pela pressão dos pensamentos que exigem a criação de um aparelho para pensá-los. Isto significa que os pensamentos são anteriores ao pensar. O pensar se desenvolve para dar conta dos pensamentos. Em suas palavras:

“É conveniente considerar o pensar como processo que depende do resultado bem sucedido de dois desenvolvimentos básicos. O primeiro é o desenvolvimento dos pensamentos. Eles exigem um aparelho que dê conta deles. O segundo desenvolvimento, portanto, é o desse aparelho que provisoriamente chamarei de pensar. Repito – o pensar tem que ser criado para dar conta dos pensamentos.” (1962)

Nascendo com o equipamento necessário todos os homens poderão aprender a andar, falar, adquirir hábitos que os tornem capazes de viver em grupo e mesmo de desenvolver notáveis habilidades que lhes darão prestígio e poder, mas isso não os torna seres pensantes.

O processo de construção da mente não é, portanto, algo assegurado pelo nascimento e pelo crescimento biológico - a mente se forma através de um processo contínuo iniciado na mais tenra infância quando o bebê experimenta vivências de caos e catástrofe oriundas das sensações corporais e suas repercussões psíquicas. Urge ao bebê metabolizar e transformar essas vivências.

Bion concebe o ponto de partida da formação do psiquismo como uma explosão primitiva, catastrófica, uma espécie de “Big Bang” inicial que constituiria a matéria prima original da vida psíquica.  Bion chamou a essa matéria prima de “elementos beta” e os descreveu como sendo estados afetivos brutos nos quais se fundem imagens, sensações e percepções compostos de elementos destituídos de significados, vinculados entre si por uma sensação de catástrofe. (Eigen, 1985)

Não existe na mente do bebê nenhum sistema de referência que discrimine cada um desses estímulos e lhes atribua um lugar. Assim sendo eles se espalham na mente infantil acompanhados de terror, “uma descarga elétrica que não vem de nenhuma fonte tangível”. (Eigen, 1985).

Podemos dizer que para o bebê humano no princípio era o Caos.

 É notável a semelhança dessa concepção bioniana dos estados iniciais do psiquismo com a descrição do poeta grego Hesíodo, sobre o nascimento do mundo e dos deuses, citado pelo filósofo Luc Ferry.

“No começo do mundo reinava o Caos, uma divindade bem estranha que nada tem de humano, na verdade é um abismo, um buraco negro, no meio do qual ser algum há que se possa identificar. Nenhum objeto, coisa alguma que possa ser distinguível nas trevas absolutas que reinam no meio daquilo que no fundo é uma total desordem... enfim nesse buraco escancarado que é o caos reina a total escuridão. Tudo é confuso e desordenado. Caos parece um gigantesco precipício obscuro. È como nos pesadelos: se você cair dentro dele, a queda é infinita. 

“Depois de repente, acontece uma espécie de milagre, surge desse caos, sem se saber por que, um acontecimento original e fundador: uma divindade formidável: Gaia, a terra, o chão firme, sólido, o chão nutriz no qual plantas muito em breve irão crescer rios correr, animais, homens e deuses vão poder andar. Gaia, a terra é o primeiro pedaço da natureza literalmente tangível e confiável, nesse sentido contrário ao caos: ali não se cai indefinidamente, pois ela nos ampara e carrega, é a mãe, matriz original da qual todos os seres vão sair.” (Luc Ferry)

Na teoria bioniana a mente materna é o fator que instala a ordem no Caos a partir do cumprimento de certas funções. A mãe, ou mais precisamente a mãe e sua mente, é Gaia, a que dá nicio a toda diferenciação psíquica e aqui já chegamos ao ponto central da Teoria do Pensar: Para se desenvolver a mente humana necessita de outra mente humana. A relação do bebê com o objeto materno é o elemento de maior importância no desenvolvimento da mente e do processo de pensamento. A mãe tem que pensar pelo bebê para que esse, internalizando um objeto pensante possa aprender a pensar.

Esse processo se torna possível graças à dimensão comunicativa do mecanismo psíquico da identificação projetiva que opera do seguinte modo: o bebê experimenta os já mencionados estados aterrorizadores destituídos de significados; não tendo ainda um aparelho mental para processá-los o bebê os projeta na mãe que irá percebê-los através das manifestações de choro e desespero do seu bebê. A mãe sensível acolhe e tranqüiliza o bebê, realizando uma espécie de desintoxicação desses estados, contendo esses temores dentro de si e os devolvendo ao bebê, acompanhados de um significado, seja por meios de palavras ou por comunicações não-verbais. O bebê agora será capaz de acolher tais vivências dentro da sua mente, ao mesmo tempo em que interioriza a mente materna pensante. Desse modo ele também poderá desenvolver uma função de conter as angústias e os temores. 

Esse processo ao qual Bion chamou de Rêvèrie necessita que a mãe seja sensível para perceber as emoções do bebê, capaz de organizar suas próprias vivências e de se por em disponibilidade como objeto a ser internalizado. Isto significa que a mãe seja capaz de lidar com suas angústias em relação ao bebê, que seja capaz de responder às manifestações afetivas do bebê sejam de desespero ou de alegria, falar-lhe docemente, fazer o bebê sentir que é querido e compreendido. Não é possível conceber a experiência emocional de Rêvèrie, fora de uma relação. A experiência emocional que acontece entre a mãe e o bebê e vice-versa, é propiciada pelos vínculos emocionais. Bion enfeixou esses vínculos em três categorias: Amor, Ódio e Conhecimento. Sem vínculos emocionais não existiria tal experiência e sem ela não poderia haver o desenvolvimento do pensamento.

Na perspectiva bioniana poder-se-ia pensar a mente como um organismo vivo, dotada de uma espécie de tropismo, que busca ativamente a mente materna como alimento para seu desenvolvimento e o digere através de um complexo processo no qual intervém uma função á qual Bion chamou de função alfa por tratar-se de um elemento hipotético, ainda desconhecido. Não se conhece ainda o que deflagra a função alfa, mas Bion concebe sua existência a partir de seus efeitos. A função alfa converte a matéria prima da vida psíquica, os já citados elementos betas - constituídos de sensações indiferenciadas, ao mesmo tempo corporais e psíquicas, destituídas de significado - em unidades elementares do pensamento.

Transformados pela função alfa os elementos beta se convertem em elementos Alfa. Sem essa transformação nenhuma impressão sensorial ou sensação psíquica poderá chegar à consciência, ser armazenada como memória ou estar sujeita a elaboração psíquica. Em outras palavras, nessa condição eles não são úteis para o pensamento; constituem uma espécie de material a ser descartado ou se são assimilados serão utilizados para descarga de estímulos excessivos, através de sintomas somáticos ou de mecanismos de identificação projetiva.

A função alfa opera ininterruptamente processando os elementos sensoriais percebidos no mundo externo e emoções vividas, agrupando os elementos alfa resultantes desse processo e os convertendo em signos e símbolos; à noite eles se tornarão imagens - o pensamento onírico do sonho - durante o dia se tornarão o pensamento inconsciente da vigília. 

Uma vez armazenados e aderidos esses elementos constituem uma barreira responsável pela diferenciação entre o consciente e o inconsciente. Se essa barreira se forma, poderemos estar acordados e dar conta de nossas tarefas sem ser perturbados pelos elementos do nosso inconsciente, da mesma forma, poderemos dormir isolando os estímulos externos para dar lugar ao material inconsciente dos sonhos.

Se a função alfa não opera ou se os elementos alfa são destruídos o pensamento não se desenvolve na medida em que deixa de haver a capacidade de sonhar e de comunicar-se com seu mundo interno ou então essa capacidade se desenvolverá com lacunas e falseamentos.  As conseqüências serão a distorção do processo de pensamento e a produção da catástrofe psicótica.
A função alfa materna provê o bebê do alimento, que para Bion, é necessário ao crescimento da mente - a Verdade que brota da confiança desenvolvida a partir da veracidade das experiências amorosas da dupla. De modo inverso a Mentira, será o seu veneno. Bion compara a desnutrição mental com a desnutrição física – a mente sofre e se estiola com a falta de verdade assim como o corpo sofre e morre com a falta de oxigênio. 

Bion construiu um modelo gráfico, ao qual chamou de Grade, para representar a evolução do pensamento e o desenvolvimento do aparelho para pensar: O eixo vertical da grade mostra as fases do desenvolvimento do pensamento desde sua matriz primitiva, os elementos beta, que depois de transformados pela função alfa evoluem para elementos alfa, estes por sua vez irão constituir as imagens sensoriais dos sonhos, das narrativas e mitos. A categoria seguinte é a Pré-concepção – um elemento insaturado, aberto ao encontro de uma realização - quando ocorre esse encontro forma-se a Concepção, na qual já há uma delimitação do pensamento. A partir daí o pensamento pode crescer em complexidade e abstração, constituindo-se em um sistema dedutivo científico que poderá ser representado por uma abstração. 

Os elementos situados no eixo horizontal mostram a utilização que podemos dar ao pensamento– quando fazemos uma hipótese inicial para nos aproximarmos ao conhecimento de algo, progredimos na investigação, usando a memória, a discriminação, avaliamos o caráter de verdade, decidimos e agimos em acordo com esse escrutínio

O Pensamento surge dentro de um sistema que aparentemente contém um paradoxo: nasce do encontro da pré-concepção com a realização e com a frustração. Os bebês já vêm ao mundo trazendo a pré-concepção de um seio que ele buscará para sobreviver. O encontro da pré-concepção do seio com o seio real produz uma realização, o seio agora deixará de ser uma pré-concepção e se torna real enquanto uma fonte de gratificação e alimento, mas essa realização não produz um pensamento sobre o seio. Para isso será necessário que o seio real esteja ausente. Em um primeiro momento o bebê alucina um seio, até o ponto onde a fome real lhe permite. Não o encontrando, a vivência é de frustração e desespero. Se o bebê pode tolerar essa frustração haverá a possibilidade de surgir na mente da criança a representação do seio e dos sentimentos ligados a ele; onde existia desespero surge agora a esperança de ter o seio de volta. Surge um pensamento sobre o seio ausente, uma abstração. É, portanto, a realização de um seio continente introjetado que permite ao bebê lidar com a frustração e propiciar o surgimento do pensamento.

O desenvolvimento da mente poderá ser impedido ou distorcido, os vínculos afetivos atacados e destruídos. Nessa situação predominarão as manifestações da mente primitiva, os sentimentos de culpa e perseguição, o ódio, a impossibilidade de discriminar o real do fantasiado, de discriminar a própria mente da mente do outro e como conseqüência a impossibilidade de se colocar no lugar do outro e desenvolver sentimentos de compaixão e amor verdadeiro, a impossibilidade de Aprender com as Experiências.

Na ausência de Pensamento estão dadas as condições para a barbárie
O método de desenvolvimento da mente, ou seja, o aprendizado pela experiência emocional entre a mãe e o bebê, é também o modelo do método psicanalítico de orientação bioniana: O analista e analisando podem se aproximar à compreensão do que emerge na sessão analítica a partir da experiência emocional, permeada pelos vínculos emocionais de amor, ódio e conhecimento que os ligam e afetam essa relação.

Esse é o ponto que introduz a mencionada mudança significativa no método analítico: A subjetividade do analista torna-se um elemento da psicanálise - entram no campo o estado emocional do analista, seus sentimentos, pensamentos e fantasias, compreendidos como uma construção conjunta da experiência emocional que está acontecendo na sala de análise. 

Considero útil trazer um recorte de uma sessão para ilustrar o que até aqui foi dito, uma vez que as teorias psicanalíticas se originam da clínica e são úteis para esclarecê-las e propiciar a troca entre colegas. 

Z. deixa a bolsa na poltrona e se encaminha para o divã. Noto que nesse trajeto ela faz uma espécie de curva, vindo em minha direção me olhando; finalmente encontra o divã, deita-se, fica em silêncio. Descrevo para ela o que observei; ela diz que também percebeu o movimento, mas não sabe por que aconteceu. Eu lhe digo que talvez ela estivesse buscando uma maior proximidade comigo. Quando me calo, vejo Z. entrar em um estado de intensa angústia: o choro alto mais parece o uivo de um animal ferido, se contorce, contrai o corpo, abraça o tórax de forma crispada, comprime o ventre com as mãos, tenta falar, mas ao mesmo tempo cerra os lábios tapando a boca com as mãos. A voz sai truncada e incompreensível. Vira-se no divã erguendo o tronco, meio deitada meio agachada estende as mãos em minha direção parece prestes a jogar-se sobre mim. Há algo de violência em seus gestos. Repete desesperada - Não! Não!

Eu me vejo muito assustada, ou melhor, aterrorizada. Temo que ela irá pular em cima de mim para me atacar fisicamente, ou fazer qualquer outra coisa terrível. O sentimento presente era de estar correndo perigo de vida. Não sabia o que fazer. Em minha frente estava uma pessoa em desespero, eu mesma estava aterrorizada, sem saber como lidar com a situação; não sabia o que dizer, mas ao mesmo tempo sentia que tinha que dizer alguma coisa. Não disse. Esperei. Observei melhor; menos que ameaçadora sua postura agora parecia indicar uma espécie de desespero implorante. Permaneci em silêncio. Aos poucos fui percebendo que um sentimento de compaixão foi se instalando dentro de mim. Falo então em tom tranqüilo, algo muito simples e diferente da sofisticada interpretação psicanalítica que momentos antes achava que me “salvaria”

-Calma Z, vai passar.

Ela me olhou, deitou-se no divã; o desespero cedeu lugar a um choro manso e depois ao silêncio. Um pouco mais tarde ela falou:

-Você não teve medo, você agüentou. O que você me disse antes tocou fundo, nunca pensei antes que eu pudesse sentir o desejo de estar próxima a você, nem imaginei que tudo que estava sentindo tivesse a ver com esse desejo. Percebia apenas que estava aterrorizada.  

Z. tem 35 anos e nunca teve um namorado ou uma relação estável, embora seja uma mulher muito bonita e muito bem sucedida. Mantinha apenas encontros esporádicos com parceiros eventuais, sempre pouco disponíveis para um compromisso. 

No exemplo mencionado, podemos ver a irrupção na mente da analisanda de um estado aterrorizante para o qual não havia palavras. A apreensão de um significado foi alcançada na medida em que a analista pode abrigar esse terror e, através de um penoso processo, o conteve em sua mente. A partir desse momento outros sentimentos e percepções entraram no campo analítico e quando finalmente a analista falou o fez com tranqüilidade e acolhimento.  A devolução, para a analisanda, de uma atitude tranqüila, permitiu à analisanda abrigar em sua mente um sentimento/ pensamento ao qual deu um significado que não existia antes.

Creio que a solidez da Teoria de Bion sobre o desenvolvimento do Pensamento nos autoriza agora a adentrarmos suas conjecturas imaginativas.

Estou de acordo com a opinião de Michael Eigen, quando defendendo Bion da acusação de ser um autor evasivo, diz que essa impressão se deve à sua incessante capacidade de experimentar e de dizer coisas que dificilmente alguém teria coragem de dizer. Nos últimos anos de sua vida Bion chamou suas idéias de “Conjecturas Imaginativas”. Nos seminários que realizou nos diversos países que visitava, estimulava os ouvintes a deixar-se habitar por  “pensamentos selvagens”, ou seja, pensamentos sem conexão com teorias conhecidas. Essa seria, a seu ver, a única forma de aproximar-se da compreensão dos mais primitivos estágios do funcionamento mental.

André Green (2000) menciona que no início de sua teorização o objetivo de Bion era claramente inspirado pela formulação de Descartes no sentido de “chegar a idéias claras e precisas” - as teorias psicanalíticas deveriam atingir o conhecimento com o grau de precisão das ciências exatas. Dentro desse pressuposto Bion construiu as teorias presentes em grande parte de sua obra. Ao se aproximar o fim de sua vida ocorreu uma mudança: Nos seminários, supervisões e últimos trabalhos Bion passou a enunciar suas idéias livremente, sem a necessidade de explicá-las dentro de um sistema científico organizado; sugeriu além do mais, que o analista seja capaz de se deixar habitar por pensamentos transitórios, abrigando “pensamentos selvagens”, ainda que ele esteja consciente da hostilidade e ataques que esses pensamentos irão provocar.

Curiosamente, o conhecimento científico também se vale dessa liberdade: no livro Pensando a Física Mário Schenberg diz em relação á física, que algumas idéias que geram as teorias têm origem conhecida, provindo de experiências, outras idéias mais fundamentais têm origem desconhecidas dos próprios autores; eles não sabem de onde elas vêm; um belo dia, sem explicação, aparece na cabeça do autor. Ele conta, por exemplo, que Max Planck caminhava pelo zoológico com seu neto quando descobriu a constante h. Conta ainda que Newton muitas vezes criava, inspirado por idéias aparentemente não científicas e descobria nelas certas possibilidades científicas e, por mais absurdo que pareça, muitas idéias da física newtoniana foram inspiradas na leitura da Tábua da Esmeralda do alquimista  Hermes Trimegisto! Vê-se então que nem mesmo na área da ciência o conhecimento deriva-se da prática, ou se insere em uma cadeia de conhecimentos anteriores.

A existência de fenômenos ligados a uma forma primitiva de funcionamento mental já tinha sido considerada por Bion, muito tempo antes, quando em seu primeiro livro, Experiências em Grupos, descreveu um funcionamento proto-mental, onde o físico e o psíquico permanecem indiferenciados. Esse funcionamento seria a matriz das doenças psicossomáticas e também das matrizes psicóticas, que podem ser ativadas em períodos de grande turbulência. Manifestações do sistema proto-mental, tanto ocorrem individualmente quanto em movimentos grupais. 

Em seus últimos trabalhos, especialmente nas conferências realizadas no Brasil, Nova York e Roma, Bion retoma essas idéias e as desenvolve no que ele chamou de conjecturas imaginativas sobre a existência de uma mente primordial desenvolvida antes do nascimento, que corresponderia a sensações que o feto experimenta na vida intra-uterina. Essa proto-mente parece se manter ativa e não modificável pelas experiências posteriores ao nascimento. Bion retoma a afirmação de Freud: “Há muito mais continuidade entre a primeira infância e a vida intra-uterina do que a impressionante cesura do nascimento nos permite supor.”

Em seu artigo A Cesura convida o leitor a considerar a possibilidade de que na mente do ser humano restem vestígios sugestivos da sobrevivência de funcionamentos embrionários intra-uterinos. O impacto da passagem da vida intra-uterina para o mundo externo é tão poderoso que nos dificulta acreditar na hipótese de que o bebê ainda dentro do útero possa ter uma proto-mente ou personalidade e que tais manifestações possam se fazer presentes mais tarde na criança e no adulto, como uma espécie de pensamento primordial. A mente primordial se constituiria assim de vestígios de fenômenos pré-natais ligados à nossa herança filogenética e de sensações que o feto experimentaria- por exemplo - a sensação causada pela pressão do líquido amniótico sobre as cavidades óticas e nasais ou outras sensações. Segundo Bion, a mente primordial representa nossa herança ancestral do mesmo modo que guardamos no nosso corpo, vestígios embriológicos de etapas evolutivas anteriores. 

Os traços deixados pela filogênese e pela ontogênese, na estrutura da mente poderiam se evidenciar nos estágios posteriores do desenvolvimento. Bion se refere “a essas sensações como “proto-idéias” ou “proto-emoções”. Na medida em que o feto possa percebê-las elas seriam uma forma rudimentar do que mais tarde se desenvolverá como consciência. ( consciência no sentido “do dar-se conta, estar consciente de “).

Conjectura que é ainda na vida intra-uterina que se desenvolvem os estágios iniciais do que será vivido depois do nascimento como medo, terror, etc. Esse conjunto de sensações/ emoções pré-natais constituiriam os primeiros estágios de um pensamento potencial que poderá evoluir como pensamento. 

Bion propõe que quanto mais inteligente e sensível for o feto mais fortemente ele se dará conta dessas sensações/emoções desagradáveis. Sendo elas demasiado precoces e prematuras podem se tornar intoleráveis para a sensibilidade do feto que então poderá fragmentá-las e expulsá-las, desfazendo-se desse modo de sua incipiente consciência.  Essas proto-emoções, descarregadas no corpo se fazem presentes posteriormente como medos, terrores, sintomas somáticos, auto-agressões e sentimentos de culpa que não podem ser controlados pelos níveis superiores da mente pela impossibilidade de terem acesso à significação.

Bion as chamou de medos ou terrores talâmicos e sub-talâmicos mencionando que eles podem permanecem na mente como funcionamentos arcaicos, inacessíveis a níveis mais evoluídos da personalidade. Esses terrores estariam mais relacionados a reações físicas deflagradas pela atividade das glândulas supra-renais e à secreção de adrenalina levando o indivíduo à reações não pensadas de ataque e fuga ( a Síndrome do Pânico seria um bom modelo desse tipo de manifestação da mente primordial), como também a condutas psicóticas, assassinatos, suicídio, etc. Na medida em que esses fenômenos ocorrem em um período no qual a córtex cerebral ainda não se desenvolveu eles não podem ser pensados nem ganhar significado permanecendo na mente como estados não accessíveis.

Bion considera que o bebê intra-uterino que descarrega sua incipiente capacidade de sentir, torna-se privado de ter sensações. Ele nascerá sem o equipamento fundamental para o desenvolvimento do sentir/pensar.

No entanto esse bebê, sendo razoavelmente inteligente, pode, na vida pós-natal, aprender por imitação muitas coisas, mas esse aprendizado estará dissociado do verdadeiro self porque está despojado de significado emocional. Nesse sentido ele teria inteligência, mas não sabedoria.
Desse ponto de vista, termos como psicose, autismo, psicose bordeline, neuroses seriam designações para esses vestígios de aspectos pré-natais, primitivos e desconhecidos, na personalidade.

Os aspectos pré-natais da mente não são sempre equivalentes a aspectos psicóticos. Eles também estão relacionados á intuição do perigo, ao forte contato com a vida onírica a aspectos criativos da mente, mas ainda assim estão associados a vivências de terror, dificuldade para adaptar-se ao mundo da realidade que exige renuncia e compartilhamento. No artigo “Domando Pensamentos Selvagens” Bion tece considerações sobre a relação entre a loucura e a genialidade. Considera que os artistas são pessoas capazes de alojar essas proto-emoções ou pensamentos selvagens. Nessas pessoas as proto-emoções podem transitar de um estado mental a outro; existe nelas uma tolerância a abrigar estados mentais perturbadores. As proto-emoções, se compreendidas pelo analista, poderão ser elaboradas e alcançar desenvolvimento.. Tomando-se a hipótese da existência da mente primordial se poderia pensar que nesses momentos de maior turbulência como nas passagens do pré ao pós-natal, do latente ao adolescente, deste á idade adulta e dela á velhice, as proto-emoções podem irromper violentamente e ocasionar diversas manifestações patológicas, somáticas ou psicossomáticas.

O desafio do crescimento é passar de um estado mental a outro.
 

A continuidade entre a mente pré e pós-natal é uma conjectura de utilidade para a clínica permitindo a inclusão e compreensão, no campo da psicanálise, de uma área de fenômenos, especialmente corporais e somáticos que observamos em analisandos adultos ou crianças: as marcas do pré-natal, apesar de obscurecido pela cesura do nascimento, seguem ativas na vida pós-natal.

O problema que se coloca é como transformar ações musculares e reações neurofisiológicas em sentimentos/ pensamentos. Bion sugere que os analistas devem escutar os estados embrionários e pré-natais que estão presentes na personalidade como funcionamentos corporais.  Desse modo haveria a esperança de poder integrar na mente os aspectos pré e pós-natais, conseguir um diálogo entre as diversas partes da personalidade.

Gostaria de finalizar essa exposição enfatizando a estrutura central da concepção bioniana de desenvolvimento humano: A criação de um aparelho para pensar os pensamentos está ligada primariamente às trocas emocionais entre a mãe e o bebê resultando na formação de um espaço mental de continência das angústias primitivas. Tendo esse espaço será possível tolerar a percepção da ausência do objeto materno e experimentar a falta. É também nesse espaço que irão se desenvolver as fantasias, a imaginação, os sonhos, elementos essenciais para o desenvolvimento do pensamento.

Na medida em que estas condições possam existir estarão dados o cimento e o tijolo para o início da construção do aparelho para pensar os pensamentos, que continuará com o desenvolvimento da pré-concepção edípica, do processo de subjetivação que levará ao alcance de uma identidade única e singular

Se isso acontece – eis o Homem.

Bibliografia de Referência:

BION, Uma Teoria sobre o processo do pensar (1962) in Estudos Psicanalíticos revisados. Rio de Janeiro. Imago editora 1988 pp101-109.          

Os Elementos da Psicanálise. O Aprender com a Experiência. Rio de Janeiro: Zahar, 1966

-A Grade. Rev. Brás. Psicanal.,7:103-129, 1973

Conferências Brasileiras: São Paulo, 1973, vol.I. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1975.

-Conversando com Bion, 1975: IDE, 18:12-17,1989. São Paulo

-Evidência, 1976: Rev. Brás. Psicanal., 19:129-141, 1985´

-Two Papers: The Grid (1971) and Caesura (1975), Imago Editora, Rio de Janeiro, Brazil.

-Seminários Italianos (1975) Roma: Bola

-Taming Wild Thoughts (1977). Londres: Karnac

BIANCHEDI, E. e outros – “Pré-natales – post-natales: la personalidad total memoria del futuro/ futuro del psicoanálisis. In: Bion conocido-desconocido. Buenos Aires: Lugar editorial. 1999.

CHUSTER, A. – W. R. Bion. Novas leituras. Vol. Rio de Janeiro. 1999. Editora Companhia de Freud pp. 93-101

EIGEN, HM. .En Torno al punto de partida de Bion: De La catástrofe a La FeLibro Anual de Psicoanálisis 1985. PP. 263-74

GREEN, A. (2000) A mente primordial e o trabalho do negativo (p.133)Livro Anual de Psicanálise.  vol. XIV. São Paulo: Escuta

FERRY, L. O nascimento dos deuses e do mundo. In: A sabedoria dos mitos gregos. Editora Objetiva rio de Janeiro 2009. PP.43-87

OGDEN. Thomas – Lendo Susan Isaac: para uma revisão radical da teoria do pensar. Livro Anual de Psicanálise. Tomo XXXVIII-1. 2013

SYMINGTON, J. e N. - A Grelha in O Pensamento Clínico de Wilfred Bion–Climepsi Editores.Lisboa 1999 PP 51 -64

 

Maria Helena de Souza Fontes

Rua prof Túlio Ascarelli, 160

05448-020 Vila Madalena

São Paulo-SP

Tel 11-38755647

mhfontes@terra.com.br